domingo, 15 de janeiro de 2012

A respiração durante a corrida


Ao conhecer o papel da respiração (na verdade, ventilação), fica mais fácil compreender porque não é necessário que ela seja feita só pelo nariz, mas também pela boca  FERNANDO BELTRAMI

Correr requer que o organismo utilize muita energia. Para que possamos fazer uso da energia proveniente dos alimentos, é necessário que se utilize o oxigênio presente no ar que respiramos. Respiração, aliás, é um termo que geralmente é empregado de maneira imprópria. Tecnicamente falando, respiração se refere ao processo de transformação de alimentos em energia e que ocorre no interior das células.


O processo que costumamos chamar de respiração, o de trocas gasosas entre o corpo e o meio externo, é corretamente chamado de ventilação. Através da ventilação inspiramos ar rico em oxigênio e expiramos o gás carbônico produzido em nossas células durante o processo de obtenção de energia.


Aliás, outro mito é o de que inspiramos oxigênio e expiramos gás carbônico. Falar assim dá a falsa impressão de que inspiramos apenas um e expiramos apenas o outro. O ar inspirado possui cerca de 21% de oxigênio e apenas 0,04% de gás carbônico. O ar expirado, por sua vez, apresenta uma concentração de cerca de 14 a 17% de oxigênio (equivalente a quantidade de oxigênio presente numa altitude de 2.500 metros) e 4 a 6% de gás carbônico.


Mahatma Gandhi, o lendário idealizador das revoluções não violentas, reconhecia o ar como um dos elementos farmacológicos naturais mais importantes, mais até que a água e os alimentos. Ele dizia que a necessidade de ar fresco era essencial para a boa formação do caráter, e defendia ardentemente a ideia de que a inspiração deveria ser feita somente pelo nariz, pois isso purificaria e aqueceria o ar antes que ele entrasse em contato com o sangue.


Ele acreditava tão firmemente nessa ideia que recomendava exercícios, baseados na técnica de yoga conhecida como pranayama (que significa justamente "respiratório"), para aqueles que não soubessem respirar direito. A devoção de Gandhi por ar fresco era tanta que ele também defendia a idéia de que as pessoas deveriam dormir nuas, tapadas por um lençol ou cobertor, em ambientes abertos, e não em quartos fechados.


A história de Gandhi serve para ilustrar uma espécie de dogma que muitas pessoas seguem até hoje: a ideia de que se deve inspirar somente pelo nariz, baseado no fato de que o nariz possui uma estrutura mais própria para tal, e que a passagem pelas narinas melhora os processos de filtragem, umidificação e aquecimento a que o ar é submetido quando entra em nossas via aéreas.




SOMENTE PELO NARIZ? Essa ideia era amplamente difundida pelos professores de educação física de antigamente, e em parte até é verdade, porém durante o exercício a necessidade de trocar grandes quantidades de ar com o ambiente é tal que se torna praticamente impossível obter todo o volume necessário somente através das narinas, que possuem orifícios relativamente pequenos.


Nessa hora, a necessidade de aumentar a ventilação deveria se sobrepor ao resto, e deveríamos fazer a transição de uma ventilação nasal para a oro-nasal. No entanto, alguns corredores simplesmente se recusam a isso, baseados em sua crença de que este procedimento é errado, e limitam sua corrida à máxima ventilação de que são capazes, utilizando apenas as narinas.


Respirar durante a corrida deveria ser uma coisa intuitiva, mas muitas vezes não é. A necessidade de encher os pulmões de ar é tão primária, que via de regra acontece de forma inconsciente, ou subconsciente. É impossível, por exemplo, tentar o suicídio trancando a respiração. Por mais que se tente utilizar a porção consciente de controle sobre os músculos respiratórios, chegará um momento em que o corpo falará mais alto, se impondo à nossa vontade. Em situações menos críticas, no entanto, o contrário ocorre. Baseados em "conhecimentos" e "ensinamentos", podemos tentar (e conseguimos) alterar conscientemente o ritmo de nossa respiração natural, o que nem sempre é bom.




PELO SANGUE, A TROCA. Independentemente do caminho de entrada, e salvo alguma pequena diferença no grau de temperatura e umidade, o caminho percorrido pelo oxigênio até as nossas células musculares é o mesmo: o ar rico em oxigênio que entra em nossos pulmões fica muito próximo ao sangue e, facilitado por diferenças de pressão, tem seu oxigênio difundido dos alvéolos pulmonares para o sangue, enquanto o gás carbônico presente em elevadas concentrações no sangue é enviado para o ar dos pulmões, que é então expirado.


O oxigênio que entra no sangue é carregado pelas hemácias, as chamadas células vermelhas, para a musculatura. Lá, por um processo semelhante ao que ocorre nos pulmões, guiado mais uma vez por diferenças de pressão, ele acaba se desprendendo das hemácias e entrando nas células musculares. De lá ele é carregado para dentro das mitocôndrias, que são estruturas responsáveis pela produção de energia dentro das nossas células. O resto do processo não é de grande importância agora. O necessário é perceber que, independentemente de entrar pelo nariz ou pela boca, a quantidade de oxigênio presente no ar, e consequentemente chegando nas células para produção de energia, será a mesma.


Inspirar o ar pelo nariz pode possuir suas vantagens, porém durante altas taxas de trabalho o corpo necessita de volumes de ar que simplesmente não podem ser supridos pela cavidade nasal. Estudos apontam que respirando somente pelo nariz se chega a cerca de 85% de consumo máximo de oxigênio obtido com a respiração oro-nasal, resultado que se obtém com um volume de ventilação cerca de 30% menor.




O MELHOR PARA CORREDORES. A respiração pelo nariz leva a ciclos mais longos, em que mais oxigênio é retirado do ar externo, e por isso se consegue obter uma maior eficiência relativa em termos de consumo de oxigênio com relação à quantidade de ar ventilado. Apesar de alguns entusiastas da yoga defenderem que com a prática se consegue, utilizando somente o nariz, obter o mesmo grau de ventilação conseguido pela respiração oro-nasal, esta não é uma realidade prática para a vasta maioria dos corredores, de forma que o conceito não pode ser aplicado antes que se tenha controle alto o suficiente sobre a respiração nasal, a ponto que ela possa ser utilizada exclusivamente sem perda de performance.


Além disso, mesmo que se obtenha cerca de 85% do consumo máximo de oxigênio, a inspiração feita exclusivamente pela cavidade nasal irá necessitar (e aqui de novo a turma da yoga poderá discordar, com razão, dentro da sua realidade) de mais esforço por parte do corredor, aumentando sua percepção de esforço. O normal para a maioria das pessoas é que mesmo aqueles que inspiram somente pelo nariz, em estágios iniciais de exercício troquem para inspiração oro-nasal quando atingem cerca de 45% de sua capacidade de corrida, ou seja, numa velocidade leve a moderada.


A respiração durante a corrida curiosamente se sincroniza com o ritmo das pernas. Apesar de essa frequência ser bastante individualizada, cada pessoa costuma reter sua frequência ao longo de um amplo espectro de velocidades, e perder esse sincronismo é um claro sinal de fadiga iminente. O ritmo de respiração em função da corrida é contado pelo número de passadas dados em cada uma das fases da respiração (inspiração e expiração). Sendo assim, são possíveis diversas combinações, como 1:1, 2:1 ou 3:2, sendo que esta última é possivelmente uma das mais comuns, e significa três contatos com o solo durante a inspiração e dois durante a expiração (que é mais forçada).


Corredores mais experientes se mostram capazes de manter sua frequência natural por uma gama mais alta de velocidades que corredores menos treinados, mais uma vez evidenciando a relação entre ser capaz de manter a respiração estável e o grau de treinamento.






ALGUNS PONTOS SÃO IMPORTANTES PARA MELHORAR SUA FORMA DE RESPIRAR DURANTE A CORRIDA, COMO POR EXEMPLO:


- Numa corrida de longa distância, sua respiração deve permanecer num ritmo constante durante boa parte do exercício. Isso é um indicativo de que seu corpo está num estado estável. Caso sua respiração comece a sair da frequência padrão, ao invés de ajustar a respiração é bem possível que você precise rever seu ritmo de corrida, diminuindo um pouco a velocidade. Isso, claro, se você não estiver nos metros finais, conscientemente acelerando sua corrida em direção à linha de chegada.


- Utilize mais o diafragma, ele foi feito pra isso. Durante o repouso, nós normalmente respiramos pelo diafragma, o principal músculo respiratório. Quando o diafragma se contrai, ele desce, forçando nossas vísceras para baixo e abrindo espaço para que os pulmões se expandam. A musculatura do tórax é apenas acessória na ventilação, e expandindo a caixa torácica não se obtém resultados tão bons de aumento de volume quanto utilizando o diafragma. É por isso que se diz popularmente que se deve "respirar com a barriga, não com o peito". Por "barriga" entende-se o diafragma, que quando se contrai força nossa barriga para fora. Além da questão do volume em si, utilizar o diafragma expande os pulmões "por baixo", fazendo com que o ar se espalhe por todo o espaço dos pulmões, ao contrário da respiração torácica, que concentra o ar na porção superior dos pulmões.


- Force a expiração. O principal estímulo para a ventilação não é a necessidade de absorver oxigênio, e sim a de remover o gás carbônico produzido. Ciclos de inspiração/expiração mais completos favorecem que essas trocas sejam feitas de maneira mais adequada, diminuindo sua sensação de esforço.


- Finalmente, tente não pensar demais na sua respiração. Ela é um processo intuitivo, que se adequa ao ritmo das pernas. Permita que o ar entre tanto pelo nariz quanto pela boca se for necessário, e deixe o corpo encontrar seu ritmo natural.

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